A experiência de assistir a Guido Sant’Anna como solista junto à Orquestra Sinfônica Brasileira foi transformadora para qualquer ouvinte. No concerto do último dia 1º de junho, o violinista de dezessete anos, brasileiro, vencedor do prestigiado concurso quadrienal Fritz Kreisler, em Viena, encerrou uma noite chuvosa de concerto na Cidade das Artes sob ovação.
Foto: Andrea Nestrea
A OSB executou duas peças que antecederam a entrada de Guido. De início, “Vereda”, sofisticadíssima composição da brasileira Marisa Rezende. Um genuíno sinete da qualidade dos compositores contemporâneos brasileiros. Após, os “Prelúdios S.97” de Liszt, sempre a exigir virtuosismo de seus intérpretes. Sob este impacto, a OSB recebeu Guido Sant’Anna para executar, juntos, a Sinfonia Espanhola, do francês Édouard Lalo.
Uma peça que, se comparada a um circuito olímpico, Guido Sant’Anna fez soar como um passeio, pela fluência com que executava. O impacto da performance arrebatou os ouvintes. Ovacionado, deu dois bis. Tocou os primeiros dois movimentos da Sonata n. 4, do húngaro Eugène Ysaÿe após insistentes aplausos.
Apesar da maturidade de sua execução, o que os olhos viam não era um veterano com décadas de experiência. Era um jovem talentoso, à beira da maioridade, com a sobriedade de um artista consagrado. Como é possível construir tanta excelência em tão pouco tempo? É fruto de individualidade virtuosa? Ou de entorno que lhe deu condições de se tornar virtuoso?
Claro que há algo de insondável no seu talento. Mas uma coisa é certa: Guido Sant’Anna é exemplo que confirma, com seu sucesso, haver virtuoses excepcionais Brasil adentro. Na música ou em qualquer outro ofício artístico. Muitos nascem com o dom inato. Poucos têm acesso às condições de desenvolvê-lo. Menos ainda efetivamente o desenvolvem.
Guido Sant’Anna superou a falta de recursos e de escola pública de música local. Sua perseverança lhe rendeu o apoio de amigos e instituições de fomento, como a Fundação Magda Tagliaferro, para ter aulas com a mestra Elisa Fukuda. Consolidou-se como violinista de referência antes dos 18 anos. Emocionou o Brasil e o mundo tornando-se referência para muitos jovens músicos a perseverarem nessa jornada do constante aperfeiçoar.
Mas seu exemplo também mostra que o dom é apenas o primeiro passo. Como afirmou o maestro Vittor Santos, o talento é a confirmação de que é necessário estudar para, assim, potencializá-lo. Transformá-lo em vocação.
O talento, portanto, é um chamado. O Estado e a sociedade têm o dever de criar condições favoráveis para que os talentosos possam atendê-lo. É nesse contexto que se insere, por exemplo, a relevância da retomada do projeto OSB Jovem neste ano. Cumprindo com sua responsabilidade social, a OSB cria uma via pela qual a juventude que enfrenta graves privações no Brasil tem oportunidade transformar seu dom em vocação consolidada.
Ser músico requer o aprimoramento de diversas competências. Envolve aprimorar a leitura musical, a audição, a mecânica do instrumento, a teoria. explorar os contornos históricos do repertório, entre tantas outras. É um caminho tortuoso que, somado aos desafios que as expressões da desigualdade no Brasil impõem, pode parecer desestimulante. Especialmente quando o progresso depende apenas do desejo individual e não conta com acesso a educação e incentivo. Indivíduo e sociedade precisam caminhar juntos na sua mútua evolução. E o prodígio exerce o papel de símbolo da importância de promover esse progresso.
Foto: Andrea Nestrea
Mas aí surge a peculiaridade do Brasil. A individualidade revela um fazer antes do saber. Os entornos podem promover o contrário. O Brasil é um país com o dom do fazer. Os que possuem o privilégio de se aprimorar têm possibilidade de produzir um belíssimo legado. Foi visível tanto no violino de Guido como nas partituras da obra Marisa Rezende, de refinamento notável. Ambos com o vigor do fazer baseados na segurança do saber. Promovem orgulho e inspiração para seus conterrâneos, além de incentivo aos jovens que verão a música como caminho gratificante para si próprios e seus ouvintes.
Um dos maiores educadores musicais do Brasil, o maestro de origem húngara Ian Guest, disse que, ao chegar aqui, sentiu-se “catequizado”. Experimentou um contraste com seus alunos na Hungria. Lá, dizia ele, “a pessoa sabia o que fazia, sabia como fazia, mas não fazia.” Aqui, ficou de queixo caído ao ver como muitos talentos, na música, não sabiam como faziam e o que fazem. Mas faziam.
Imaginem se soubessem.
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