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  • João Carlos Cochlar

A fé e o exemplo


Solista Raphael Paixão com Orquestra Sinfônica Brasileira na Sala Cecília Meireles
Foto: Andrea Nestrea


No livro “O rabino do mundo”, o jurista Gustavo Binenbojm, examinando o legado do rabino inglês Jonathan Sacks, apresenta uma ideia do que seja a fé. É a confiança que move os que creem em situações de incerteza. É aderir a essa convicção sem garantia de nada em troca. Confiar sem nenhuma retribuição, nenhuma glória, felicidade ou reconhecimento. Segundo Binenbojm, “é a coragem de correr riscos por amor a uma causa justa, seja qual for o fim da história”.[1]


Toda história de vida tem capítulos dolorosos. Mas também os momentos sublimes. E o concerto do dia 25 de novembro de 2023 foi um destes para o primeiro trombone da OSB, Raphael Paixão. Ele foi o solista na execução do Concertino para Trombone, do alemão Ferdinand David.


Raphael Paixão foi escoltado pela maestra Priscila Bonfim em um garboso terno laranja. Ao agradecer, empunhou o trombone orgulhoso. Sua expressão transmitia a alegria de uma vitória. E após sua atuação notável como solista, acompanhado dos colegas de OSB, confirmou esse sucesso nos aplausos. Após sair do palco, Raphael foi prontamente reconvocado pela plateia que pedia bis.


Mas antes de começar, quis dedicar o bis a alguém.


Dedicou a uma mulher. Alguém que, segundo o trombonista, enfrentou diversas provações. Ficou viúva aos 35 anos, com renda de um salário mínimo, três filhos para criar e, conforme disse, “muita fé em Deus”. Fé em dias melhores. Os anos se passaram, e Raphael Paixão anunciava que um desses filhos se tornou professor. O outro, missionário e inspetor escolar. E o terceiro se fez o primeiro trombone da OSB. Ele próprio.


“Esse bis é para a senhora, mãe.”


Raphael Paixão, primeiro trombone da OSB
Raphael Paixão, primeiro trombone da OSB. Foto: Andrea Nestrea.

A orquestra se juntou a ele para o hino “Carinhoso”, de Pixinguinha. Emoção nas alturas. Não só pela música, mas também pelo significado do que ali acontecia. O testemunho público de gratidão pela fé daquela mãe homenageada, decisiva para que o filho chegasse aonde chegou. Foi uma ovação. Especialmente para a mãe presente e muito emocionada.


Teriam eles a garantia, no auge das provações, de que chegariam ali? Provavelmente não. Talvez nem imaginassem. Não projetariam que Raphael, que há muito tempo tocava “Carinhoso” para sua mãe, o faria em um contexto tão solene. Mas a confiança na criação e na formação os levou a esses dias de alegria.


O agir na fé de Raphael e sua mãe – contra todas as provações – gerou um fruto naquele concerto: o exemplo. A demonstração pública para uma comunidade de que um impossível se fez possível: ascender pela música.


Nesse Brasil de tantas desigualdades, a falta de exemplos e as barreiras cada vez maiores para o sucesso podem colaborar para a perda da fé. Sobretudo para os que vêm das margens do poder econômico, político e social. Precisam provar que são muito melhores para conquistar a possibilidade de serem notados. É uma luta contra a mais nociva das desigualdades: a das oportunidades.


Enfrentá-la contra todos os percalços é um ato de fé. Geram exemplos de sucesso, ainda que os fatos sugiram o contrário. São inspirações que levam jovens da geração seguinte a também acreditar e buscar sua evolução. Seja na música ou em qualquer outro ofício. Na vida.


Nesse contexto, dois valores norteiam a OSB. Parecem contraditórios, mas não são. O primeiro é o de se manter uma orquestra com o mais alto nível de excelência. Uma busca constante em ser melhor do que foi antes. Referência apenas de si mesma na busca de evoluir.


O segundo valor é ter a capacidade de produzir transformação social. Buscar e dar caminhos ela própria para construir os exemplos de que tanto precisamos. Como se disse antes, a OSB ambiciona ser uma ponte para que os talentosos ocupem os merecidos lugares.


A ação da OSB reflete o seu ofício.


Orquestra Sinfônica Brasileira na Sala Cecília Meireles
Foto: Andrea Nestrea.

Afinal, o que é a música senão, também, um ato de fé? Ninguém é obrigado a gostar da arte de ninguém. Mesmo com todo empenho e estudo, a música não é desligada do todo que somos. Evoca nossos gostos, memórias, contextos e culturas. É preciso coragem para militar na música, porque nada assegura que o ouvinte vai gostar. O músico parte da fé de que todo seu preparo e empenho gera algo belo em si mesmo. É uma comunicação que toca nas emoções, na contemplação, na criatividade. Nada garante os aplausos.


Mas, naquela tarde, vieram.


Raphael Paixão é o primeiro trombone da Orquestra Sinfônica Brasileira. Deu o testemunho de que a música também é porta para o sucesso e a excelência. A OSB reafirma seu compromisso como uma orquestra mestiça, que busca ser muito mais do que a soma, mas a mistura do que se tem de melhor no Brasil. Seu público testemunhou um dos exemplos maiores do que é o amor de mãe, contra todas as evidências. Vimos o que é construir pontes entre os talentos ocultos e os espaços de protagonismo.


E assim, com bons exemplos de fé, construímos boas mudanças.

[1] BINBENBOJM, Gustavo. O rabino do mundo: a sabedoria judaica compartilhada. Rio de Janeiro: Ed. História Real, 2023, p. 103.

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