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  • João Carlos Cochlar

A renovação dos rituais

Por João Carlos Cochlar


Fotografias: Andrea Nestrea


Nesta temporada, a OSB se aproxima dos povos indígenas brasileiros. Não apenas como temática, mas em imersão concreta. No dia 18 de março, uma equipe da OSB visitou as aldeias Inhãa-Bé e Tuyuka, no Amazonas, onde será realizado um projeto a se anunciar este ano.


Compreender e interagir com culturas distintas da nossa implica estar disposto de se desapegar dos próprios dogmas. Observar a rotina, a culinária, as celebrações, a fé e as formas de convivência. Enfim, assimilar seus rituais.


Antes do início do concerto do dia 25 de março, a vice-presidente executiva Ana Flávia Cabral Souza Leite relatou sua experiência nas aldeias. Observou o apego das aldeias a ritos de passagem que simbolizam processos de transformação. Seja com a unção do líder, a transição para a vida adulta ou manifestação da fé. As danças, músicas e desenhos são símbolos desses ritos de passagem.


Inúmeros compositores utilizaram essa riqueza como fonte de inspiração para suas obras. Inclusive “Ponteio”, do brasileiro Claudio Santoro, e a Sinfonia nº. 3, de Aaron Copland, ambas executadas pela OSB nesta ocasião. O pulso rítmico inicial da obra de Santoro, que é amazonense, emula uma dança indígena. Já Aaron Copland foi imensamente influenciado pela música dos indígenas americanos, sobretudo como mecanismo de desligamento de uma estética europeia. E junto dessas duas peças, foi interpretado o magnífico Concerto para Piano nº. 4, com a solista Olga Kopylova, que tocou o Prelúdio em B menor, de Bach, como bis.


Disse o filósofo teuto-coreano Byung-Chul Han que os rituais são ações simbólicas. Quem deles participa sente-se pertencendo aos que compartilham de suas regras e do seu processo transformador. Cada membro de uma aldeia indígena, por exemplo, percebe a si próprio e sua comunidade a partir dos rituais que compartilha. O ritual é uma forma de pertencimento, de formação da identidade e da noção do próprio espaço. Ainda segundo Han, “rituais criam uma comunidade de ressonância capaz de um acorde, um ritmo comum”.


Vive-se tempos, contudo, de desaparecimento dos rituais. Tempos em que liturgias de cerimônias religiosas e cívicas vêm sendo objeto de revolta. Rituais que deveriam ser carregados de significado se revelam, na verdade, uma expressão de formalismo vazio e excludente. Entretanto, a revolta contra os rituais não pode levar à sua abolição. São os rituais que simbolizam os momentos da vida, que dividem o antes do depois. Uma vida sem rituais seria o mesmo que se ver instalado na velhice sentindo-se ainda imaturo.


O que é ir a um concerto? Por muito tempo, uma ocasião solene. Um ritual, portanto. Plateia e músicos portam trajes finos. Os portões se fecham após o sino tocar três vezes. A orquestra entra sob aplausos. Depois, o spalla, que é como chamamos o primeiro-violino. Ele afere a nota “lá”, a partir da qual todos os músicos afinam seus instrumentos. Em seguida, entra o maestro, que cumprimenta o spalla. Batuta abaixo, começou o concerto. Entre os movimentos das peças, nada de aplausos. Ao final, solista e maestro recebem aplausos e flores. Todos passam por uma experiência transformadora. Dividem-se em antes e depois.


Os rituais, contudo, não podem ser inflexíveis. Se perdem o propósito original ou os valores de uma comunidade, são apenas regras sem sentido. Um exemplo vem dos aplausos entre os movimentos. Pode ou não pode? É deselegante aplaudir? Afinal, na execução de Copland pela OSB neste último concerto, o protocolo não conteve a emoção dos aplausos.




O crítico musical Alex Ross relata que essa regra vem de um pedido do compositor Richard Wagner na estreia de sua ópera Parsifal, em 1882. Queria que os músicos não agradecessem à plateia ao fim de cada movimento. Interpretou-se isso, contudo, como um banimento aos aplausos. Qual foi a consequência disso? Em outra performance da obra, um espectador não se conteve e gritou: “Bravo!”, no que foi prontamente censurado pela plateia. Só que era o próprio Wagner... E essa tradição persevera até hoje. Abandonar essa regra seria uma mudança sadia?


Assistir a um concerto é um rito de passagem. Contemplar a estética da música de concerto é dividir o tempo em antes e depois da experiência. Esse ritual que gera uma grande comunidade, no caso, em torno da Orquestra Sinfônica Brasileira, deve estar voltado ao seu poder de gerar pertencimento a cada vez mais pessoas. Um ritual que não exija becas e formalismos como fins em si mesmos, mas que permita que a força de seus símbolos impacte positivamente a vida do seu público.


Talvez nesse espírito de pertencimento que comentou Geraldo Carneiro, poeta da Academia Brasileira de Letras, por ocasião de sua posse: “Adoro rituais! Sou a favor de ritualizar tudo, sempre”.


Renovar os rituais é a conservação do pertencimento.


Nos próximos dias 7 e 8 de abril, a Orquestra Sinfônica Brasileira interpreta obras de Mozart e Schumann na Sala Cecília Meireles.

Acompanhe tudo sobre a orquestra que toca o Brasil

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