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João Carlos Cochlar

Entre terras e sons

Por João Carlos Cochlar

Fotografias: Zô Guimarães


Terra é uma palavra polissêmica. Comporta inúmeros significados. Dá nome ao planeta em que vivemos. Refere-se à origem de indivíduos e coisas. Remete à cultura de uma comunidade que compartilha o mesmo espaço. É a matéria onde plantamos uma árvore. Ou ainda um dos quatro elementos do universo, junto com água, ar e fogo. Sem falar nos usos metafóricos, metafísicos, metonímicos ou na forma de tantas outras figuras de linguagem.


Terra é a temporada de 2023 da Orquestra Sinfônica Brasileira. A OSB comunica esse conceito pelo mundo dos sons. Seja como uma reverência às origens dos compositores, dos maestros, dos músicos. Seja como pela representação dos sons da natureza ou de uma cultura. Tudo ao mesmo tempo ou nada disso.


Afinal, sabemos que desvendar tais significados somente a partir dos sons é quase como resolver um mistério sem pistas.


Mas apenas quase. Nos concertos do último fim de semana (18 e 19), surgiram algumas. Foram ocasiões de inúmeras celebrações. A OSB saudou o legado de Edino Krieger, que nos deixou em dezembro de 2022, com sua Abertura Brasileira de 1955, dedicada a Luiz Gonzaga. Deu ainda continuidade às homenagens aos 150 anos do nascimento do compositor russo Serguei Rachmaninoff com talvez o mais célebre de seus concertos para piano: o segundo. Rememorou Beethoven com sua Sinfonia Pastoral, de sonoridade sempre familiar, apesar dos 196 anos de falecimento do compositor a se completarem no próximo dia 26 de março. E para a condução dos trabalhos, o maestro azeri Yalchin Adigezalov retomou a batuta.


Retomou-se ainda uma das marcas da Orquestra: o 1º Concerto para a Juventude deste ano. Tradição que completa oitenta anos em 2023. Um ambiente no qual famílias e crianças imergem no mundo da música clássica misturando o lúdico das explicações com a beleza do som da Orquestra. (Trans)formando escutadores em ouvintes. Escutar com entendimento.


Nas notas de programa de Max Lima, reconheceu-se que o repertório deste último fim de semana é dotado de “fascinante apelo sinestésico”. O que quer dizer? As obras não geram no ouvinte apenas sensação de beleza sonora. Podem remeter a ideias, imagens, conceitos. Às vezes pela experiência individual, outras por influência do compositor ou do intérprete.


Algumas dessas lições foram aprendidas com este 1º Concerto para Juventude. São as pistas as quais me referi. Com Abertura Brasileira, Edino Krieger visou descrever as paisagens nacionais. É, de fato, uma obra que junta vários ambientes em uma peça só. Uma festa de vários climas. Já a Pastoral de Beethoven é ainda mais explícita. Cada movimento – como chamamos as partes da obra – não receberam apenas nomes técnicos. Mas descritivos da natureza, como “Despertar de sentimentos alegres na chegada ao campo” ou “Cena às margens de um riacho”. Viu-se que o tímpano pode ser uma tempestade. O flautim pode ser um raio.


O ouvinte pode não fazer ideia de qual era o tipo de sinestesia que o compositor tinha intenção de provocar. Todas essas peças podem ou não remeter a uma série de ideias. Mas ao percebemos a relação entre o som e as intenções do compositor, ela parece que sempre esteve lá. Sobretudo com a execução precisa da Orquestra.


O Concerto para piano nº 2 de Rachmaninoff foi uma ocasião à parte. Uma obra portentosa executada ao máximo de suas possibilidades. Como revelou a excelente matéria de Gustavo Zeitel na Folha de São Paulo, as composições de Rachmaninoff tipificam a cultura e a fé do seu povo. Muito embora, no caso desse concerto, os primeiros acordes do piano emulem o balançar de um pêndulo, pois o compositor se submeteu à hipnose após anos de crise sem conseguir compor. Virou um de seus maiores legados.


Em homenagem aos 150 anos de nascimento do compositor russo, todos os concertos para piano de Rachmaninoff constam nos programas do início deste ano.





Ao Blog OSB, Leonardo Hilsdorf, solista da obra ovacionado pelo público, celebra o reencontro com a Orquestra com a execução dessa peça. Destaca os anos de tradição e a capacidade da OSB de representar o Brasil. Brindou ainda a plateia com um bis: o adagio de Sonata ao Luar, de Beethoven. Um “detox sonoro”, segundo ele próprio, após um intenso concerto de Rachmaninoff. Preparou com elegância o terreno para a serenidade de Beethoven.


O que o público viu não foi apenas uma execução extraordinária de cada uma das obras. Viu um maestro do Azerbaijão reger uma composição de um brasileiro. Um pianista brasileiro ser solista de obra russa. Uma obra de um alemão executada por orquestra composta por músicos de Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso, Santa Catarina, Pará e tantos outros estados. Além de Bulgária, Chile e França. Obras com intenção, sempre furtiva, de retratar lugares, paisagens, natureza e culturas.


Todas as ideias de terra comunicadas simultaneamente na mesma linguagem dos sons. Capazes de tocar, com os mesmos sons, a todos das mais diversas terras.


Nos próximos dias 25 e 26, a OSB dá continuidade à temporada com obras de Claudio Santoro, Rachmaninoff e Aaron Coopland em concertos a se realizarem na Cidade das Artes.



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